Estava lendo 21 Lições para o Século 21 de Yuval Noah Harari, e Nexus, e ambos os livros trazem um ponto crucial: países estão enfrentando o risco de se tornarem “colônias de dados”. Não mais colônias de recursos físicos, mas territórios que produzem e exportam dados brutos para potências digitais que, posteriormente, extraem valor, inovam e geram riqueza em cima dessa matéria-prima intangível.
Harari destaca que o controle sobre dados já equivale ao poder de exploração econômica do passado. As grandes potências digitais — geralmente com sede nos Estados Unidos, Europa e China — extraem dados de outros países em volumes massivos. E isso vai além de apenas “saber sobre nós”. Com essas informações, algoritmos sofisticados podem influenciar mercados, prever comportamentos e até mesmo moldar decisões políticas e econômicas, o que leva a uma dependência profunda dessas economias digitais.
🛤 Qual o Caminho para o Brasil?
- Soberania de Dados: Assim como nação protege seus recursos naturais, precisamos tratar os dados como patrimônio estratégico. Políticas públicas que incentivem o armazenamento e processamento de dados em território nacional são um passo essencial.
- Infraestrutura Digital e Educação: Não basta reter dados, é necessário saber extrair e gerar valor sobre eles. Investir em capacitação e formação de profissionais da ciência de dados e inteligência artificial é fundamental para evitar que o valor produzido pelo Brasil seja exportado.
- Parcerias Estratégicas: Em vez de confrontar grandes players digitais, o Brasil pode construir alianças com outros países que enfrentam o mesmo desafio, como Índia, África do Sul e México, criando uma rede de soberania digital que fortaleça o intercâmbio justo e ético de dados.
- Incentivo à Inovação Local: Fomentar startups e empresas de tecnologia nacionais é essencial para reduzir a dependência externa. Incentivar hubs de inovação e financiar iniciativas locais que trabalhem com inteligência artificial e análise de dados podem nos tornar exportadores de tecnologia e valor, em vez de exportadores de dados.
O risco de se tornar uma “colônia de dados” é real, mas há caminhos para evitá-lo. Proteger nossos dados e capacitar nossa população para gerar valor sobre eles é a chave para construir um Brasil autônomo e competitivo no cenário digital global.
As grandes corporações de tecnologia têm explorado intensamente a experiência humana como uma “matéria-prima gratuita”, apropriando-se de dados comportamentais como se fossem sua propriedade. Esse processo de exploração, que Shoshana Zuboff chama de “capitalismo de vigilância”, pode ser entendido como uma nova forma de colonialismo: o “colonialismo digital”. Aqui, a vida humana é tratada como recurso a ser extraído e monetizado em plataformas que prometem “conexão” e “comodidade”, mas que, na prática, servem como redes de captura e mineração de dados.
Esse fenômeno se torna ainda mais evidente nas alianças estratégicas entre governos e Big Techs, que frequentemente ignoram a expertise local. Por exemplo, em 27 de maio de 2020, o Ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações do Brasil firmou um acordo com a empresa norte-americana Cisco. O objetivo, segundo o governo, era “acelerar a transformação digital” no país, sem consultar pesquisadores, universidades, ou especialistas em políticas públicas locais. A Cisco ficou responsável por desenvolver uma “plataforma digital inteligente” para monitorar e gerenciar políticas públicas no Brasil. Em vez de fortalecer o setor nacional de tecnologia e ciência, essa parceria expõe o país à dependência tecnológica, transformando-o em uma espécie de “colônia digital”.
Durante a pandemia de COVID-19, a presença e o poder das Big Techs se ampliaram drasticamente. Enquanto o Produto Interno Bruto (PIB) de vários países encolhia, as grandes plataformas tecnológicas, como Facebook, Google, Amazon e Microsoft, lucraram com o aumento da coleta de dados. Esse lucro desproporcional revela que, em meio à crise global, a monetização da experiência humana continuou a prosperar, consolidando ainda mais o poder dessas empresas. No primeiro trimestre de 2020, por exemplo, o Facebook relatou um aumento de 102% nos lucros em relação ao ano anterior. O Google Meet somou três milhões de novos usuários por dia, e a Amazon teve um crescimento de 26% no faturamento.
O uso da experiência humana para fins de extração e controle se estende à educação e às políticas públicas. Muitas universidades brasileiras migraram para plataformas como Google, Microsoft e Amazon, abdicando da gestão de dados estratégicos e entregando informações pessoais à mercê dessas corporações. Iniciativas como a “Educação Vigiada” revelaram que cerca de 70% das universidades públicas e secretarias estaduais de educação dependem das infraestruturas dessas plataformas.
Essa dinâmica de dominação é reforçada pela falta de políticas soberanas de dados no Brasil. Por exemplo, o Ministério da Educação celebrou a migração do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) para a Microsoft Azure, entregando os dados de estudantes a uma multinacional sem considerar a viabilidade de uma infraestrutura nacional. Essa dependência não só compromete a soberania tecnológica, mas também perpetua o “neocolonialismo digital”, em que dados pessoais são extraídos e explorados pelas grandes plataformas em troca de serviços “gratuitos”.
Para os teóricos Nick Couldry e Ulises Mejias, esse cenário representa um “colonialismo de dados”, em que as vidas das pessoas são continuamente extraídas para fins de lucro. A pesquisadora Paola Ricaurte aponta que essa epistemologia centrada em dados é um sintoma da “colonialidade do poder”, na qual a sabedoria local e o conhecimento tradicional são subordinados às epistemologias mercadológicas. Esse modelo de economia orientado por dados busca moldar a sociedade e a própria percepção humana, normalizando a crença de que “os dados falam pela realidade”.
O avanço dessa economia de dados é incentivado pela complacência das populações, encantadas pelas “bugigangas” tecnológicas. Assim, o Brasil, como outros países em desenvolvimento, vê-se transformado em uma colônia digital, cujos dados são extraídos e processados para beneficiar empresas estrangeiras, que concentram cada vez mais poder e recursos.
Vamos colocar este debate no centro das discussões de inovação, liderando de forma ética e estratégica.